BRINCANDO COM AS LETRAS: REFLEXÕES SOBRE O LETRAMENTO NA EDUCAÇÃO
INFANTIL.
Andréa Diana Heylmann – Acadêmica da
Universidade Feevale
RESUMO
Será possível que o espaço da sala
de aula de uma turma de educação infantil, contribua para o letramento de crianças
de até 6 anos de idade? Há possibilidades de se trabalhar o letramento
utilizando-se apenas de brincadeiras livres e dirigidas, bem como outras atividades
e momentos da rotina da turma? Este artigo visa trazer alguns esclarecimentos acerca
do tema letramento na Educação Infantil, trazendo relatos de um projeto de
aprendizagem desenvolvido em uma turma de maternal, discutindo posteriormente
como podemos de maneira lúdica, estimular as crianças pequenas a entrarem em
contato com o mundo das letras. O pontapé inicial para o desenrolar deste
projeto foi o interesse das crianças pelas letras, manifestado durante momentos
da rotina e de brincadeiras livres. O objetivo foi conhecer apenas as letras
correspondentes ao nome de cada criança, bem como o da professora,
identificando-os dentre os demais nomes dos colegas. Ao ficar a par das
atividades desenvolvidas durante o projeto que dá nome a este artigo, chegamos
à conclusão de que é sim possível promover o letramento de crianças sem que
estejam alfabetizadas. Utilizando-se apenas de brincadeiras de faz de contas,
jogos e atividades lúdicas, plásticas e motoras, bem como investindo na
decoração da sala de aula, trazendo ao alcance das crianças, diversos materiais
de leitura e escrita. Possibilitando assim, que as mesmas possam o quanto
antes, entrar em contato com o mundo letrado, nunca deixando de lado, porém, a
ludicidade e o brincar. O artigo traz estudos a respeito do que é letramento, a
importância do nome próprio para cada criança, as contribuições da sala de aula
para desenvolver o aprendizado das crianças, entre outros. Alguns dos autores
apontados são Soares, Redin, Craidy, Kaercher, entre outros.
Palavras
chave: -Educação Infantil- Espaço da Sala de Aula – Letramento - Ludicidade
LETRAMENTO NA EDUCAÇÃO INFANTIL?
Visto
que muitos professores atuantes na Educação Infantil hoje no Brasil desconhecem
a importância do contato das crianças com materiais escritos e seus usos
sociais, surgiu a proposta de pesquisar a respeito da prática do letramento com
crianças de até 6 anos de idade, a fim de auxiliar os educadores a aprimorarem
suas práticas. Cada vez mais, os professores precisam estar atentos para
estimular os alunos a desenvolverem suas potencialidades. Não podemos dar as costas
às curiosidades das crianças, uma vez que elas apresentam cada vez mais o
desejo de aprender sobre os mais variados assuntos. Não se pode deixar de lado,
porém, a ludicidade, que é fundamental na vida de cada criança.
Tendo em vista as
palavras citadas acima, surge a proposta deste artigo, que é discutir sobre a
importância do professor proporcionar aos alunos momentos de interação com o
mundo da leitura e escrita, utilizando-se da própria rotina, do ambiente da
sala de aula, das brincadeiras livres e dirigidas. Como afirma Gabriel de
Andrade Junqueira Filho, não podemos desperdiçar as potencialidades das
crianças nem negar a elas o conhecimento a que tem direito, e sim, respondê-las
á altura de sua curiosidade. (FILHO, 2001, p.141apud KAERCHER)
Partindo
de observações feitas das crianças durante a hora do brinquedo livre,
percebeu-se que demonstravam grande interesse pelas letras estampadas em peças
de encaixe feitas em E.V.A., nas roupas das crianças, em livros, revistas,
embalagens vazias, etc. Surgiu então a ideia de desenvolver um projeto de
aprendizagem a respeito das letras. Estas por sua vez, seriam apresentadas aos
alunos de forma lúdica, afinal nesta faixa etária, é fundamental que as
crianças possam brincar e vivenciar plenamente este período de suas vidas que
chamamos de infância.
Para
dar inicio ao trabalho, será apresentado o projeto de aprendizagem, intitulado,
“Brincando com as letras”, cujo tema central são as letras do nome de cada
criança da turma. A seguir, será feita
uma análise do ambiente da sala de aula e das atividades realizadas no
projeto, a fim de averiguar de que maneira elas contribuíram para apresentar as
crianças ao mundo letrado e como isto pode auxiliar na alfabetização das
mesmas. Por fim, serão apontadas as conclusões as quais chegamos com este estudo.
BRINCANDO COM AS LETRAS
O
título citado acima se refere ao nome dado a um projeto de aprendizagem
desenvolvido no ano de 2009 em uma turma de maternal. A Escola de Educação
Infantil na qual se deu o projeto é pública e atende crianças desde os 4 meses
de idade até 5 anos e 11 meses e situa-se em uma pequena cidade no interior do
Rio Grande do Sul. Os alunos em questão têm entre 3 e 4 anos de idade.
A proposta de desenvolver um projeto
com este tema surgiu a partir de observações realizadas por mim enquanto
professora da turma durante a hora do brinquedo livre. Na ocasião estávamos
brincando com peças grandes feitas em E.V.A, que se encaixavam formando um
tapete. As peças eram de cores variadas e tinham letras e números que poderiam
ser tiradas e recolocadas. As crianças costumavam brincar montando cubos que
serviam de garagem para os carros, caminhas para as bonecas, etc. Em um
determinado momento, um menino de apenas 3 anos de idade mostrou-me a letra N, afirmando que aquela era
a letra da “notícia”. Imaginei que havia sido por causa de algo que fora
submetido, como a TV, por exemplo, Jornal Nacional. Hipótese confirmada ao
final do dia conversando com sua mãe. Ao ouvir o comentário do colega, uma
menina de 4 anos trouxe me a letra X, perguntando se aquela era a letra da
Xuxa. Após estas descobertas, todas as crianças passaram a trazer letras
espalhadas pelo chão, perguntando de quem era aquela letra, qual era a sua, a
de sua mãe, do pai, etc. Percebendo o entusiasmo da turma a respeito das letras
resolvi trabalhar este assunto em forma de projeto.
Obviamente o objetivo deste projeto
de aprendizagem não era alfabetizar as crianças, tampouco ensiná-las a escrever
algumas palavras. Apenas apresentar a elas, as letras dos seus nomes, e
proporcionar momentos de interação das crianças com o mundo das letras. Emília
Ferreiro, no livro Com Todas As Letras, diz:
Da mesma maneira,
não é obrigatório dar aulas de alfabetização na pré-escola, porém é possível
dar múltiplas oportunidades para ver a professora ler e escrever; para explorar
semelhanças e diferenças entre textos escritos; para explorar o espaço gráfico
e distinguir entre desenho e escrita; para perguntar e ser respondido; para
tentar copiar ou construir uma escrita; para manifestar sua curiosidade em
compreender essas marcas estranhas que os adultos põem nos mais diversos
objetos. As repercussões deste tipo de pré-escola na alfabetização inicial, na
escola de 1° grau, são enormes[...] (FERREIRO, 2004, p.39)
Durante alguns meses, fizemos
diversas atividades, brincadeiras e jogos, ouvimos, “lemos” e contamos
histórias, colecionamos objetos, etc. Sempre trabalhando uma letra de cada vez.
Alguns dos objetivos que constavam no projeto eram: entrar em contato com o
mundo das letras; desenvolver o hábito e o gosto pela leitura; conhecer e
identificar as letras iniciais do seu nome próprio; identificar oralmente nomes
e objetos que comecem com determinadas letras; observar e comparar os nomes dos
colegas; classificar os nomes de acordo com a letra inicial, desenvolver
habilidades de pintura, recorte, colagem, modelagem, etc.
A decoração da sala também foi
adaptada ao nosso assunto em estudo. Enfeitamos as portas dos armários e
prateleiras com letras coloridas. Pintamos com tinta têmpera as iniciais dos
nossos nomes na janela. Montamos um cantinho na sala com uma biblioteca cheia
de livros, revistas, panfletos, jornais e materiais diversos como papel, lápis,
canetas, tesouras e outros matérias de pintura para que as crianças pudessem
brincar livremente na hora do brinquedo. Colocamos um cartaz com todas as
letras e fizemos um grande painel aonde íamos colocando todos os nomes dos
colegas que já tínhamos estudado. No chão, havia escrito bem grande com fita
crepe ou tinta, a letra que estávamos estudando naquela semana.
Optei por explorar apenas as letras
do nome de cada criança e o da professora, sendo que toda semana trabalhávamos
uma letra. Algumas vezes mais colegas tinham a mesma inicial, então fazíamos
atividades referentes a todos os nomes com a mesma letra inicial. As atividades referentes ao nome das
crianças desenvolveram nelas uma série de aprendizagens, como cita Ferreiro:
As letras começam a
ter proprietários concretos dentro do grupo, o que ajuda a identificá-las, já
que cada qual quer conservar as distinções que lhes concernem. Alguns nomes
escrevem-se com poucas letras e outros com muitas, o que gera novas interrogações. Com as mesmas em
posição diferente escrevem-se nomes diferentes, o que ajuda a prestar atenção à
série completa das letras e à posição precisa de cada letra dentro da série, e
assim por diante. [...] (FERREIRO, 2004 p.46)
Houve momentos em que procurei
envolver a família no projeto, solicitando que trouxessem de casa, objetos que
começassem com a letra em estudo. Depois promovia uma conversação na hora da
rodinha, onde todos apresentavam o seu objeto, descrevendo-o, falando sobre sua
serventia, etc. Solicitei que cada criança trouxesse de casa, livros de
histórias para que eles mesmos pudessem contar uns aos outros, ou então eu
contava as histórias na hora do conto. Algumas vezes também eu fazia um
rodízio, onde por alguns minutos a criança poderia ler uma história. Passado
aquele tempo, cada uma passava o livro ao colega do lado, sendo que ao final da
atividade, todos tiveram a oportunidade de ler todos os livros, podendo
compará-los em relação a tamanhos, ilustrações, números de páginas, tipos de
história, personagens, etc. Nesta atividade, combinamos que a leitura seria
silenciosa, para que um colega não perturbasse a leitura do outro. Percebi que de acordo com a página do livro,
as crianças mudavam as expressões faciais, faziam barulhos para mostrar
espanto, medo, alegria, mexiam-se em seus lugares, etc.
No decorrer dos dias, as crianças
passaram a reconhecer letras em diversos locais, como por exemplo, na roupa da
professora, nos livros, em embalagens vazias, no banco do ônibus, em placas
durante passeios pelo bairro, etc. Também passaram a se dar conta de que todas
as coisas poderiam ser escritas. Relatavam qual era a letra inicial dos
brinquedos com os quais estavam brincando, faziam relações entre seus nomes e o
dos colegas, apontando semelhanças e diferenças quanto a tamanho, número e tipo
de letras, etc.
Inúmeras atividades fizeram parte do
projeto, conhecemos várias histórias, usamos o nosso corpo para formar as
letras, procuramos figuras em revistas, confeccionamos um gráfico para
descobrir qual letra se repetia mais entre os colegas, etc. Estas são apenas
algumas que constaram no projeto, que pode ser considerado interdisciplinar,
uma vez que contemplou nas brincadeiras e nos trabalhos, além das letras,
também disciplinas como Educação Física, Matemática, Artes, Ciências, etc.
Outra atividade realizada que
considero importante mencionar foi a confecção de uma lista de todos os
brinquedos que começavam com a letra B. Na hora da rodinha, propus que listássemos
todos os brinquedos, jogos ou brincadeiras cuja letra inicial fosse B. As
crianças imediatamente começaram a citar brinquedos e objetos que eu ia
escrevendo com giz em um quadro que as crianças tinham no cantinho temático da
biblioteca. Esta experiência foi muito rica, pois desenvolveu a oralidade das
crianças. Toda a turma participou dando sugestões, corrigindo os colegas caso
estivessem enganados em relação à letra, etc. Após aquela atividade, passamos a
brincar durante a semana com as brincadeiras e os brinquedos que continha a nossa
lista. À medida que íamos brincando, riscávamos a palavra. Contávamos quantas
palavras havia no total, com quantas já tínhamos brincado quantas ainda não,
etc.
Nenhum aluno alfabetizou-se com esta
experiência, não foram propostas atividades para reproduzir as letras no papel,
sequer aprenderam todo o alfabeto. Apenas conheceram as letras que eram do
interesse deles, e com elas, formaram nomes, descobrindo que muitas vezes as
letras se repetem ou mudam de lugar formando outras palavras, etc. Considero
fundamental salientar que em nenhum momento as crianças deixaram de brincar e
se divertir, mesmo enquanto estavam aprendendo sobre algo tão importante.
Certa vez, estávamos no pátio desenhando
com giz na calçada. Entre um desenho e outro, algumas letras começaram a criar
forma. Entusiasmadas, as crianças me chamavam para mostrar o que haviam feito.
Também os colegas queriam olhar e tentavam imitar, perguntavam como era uma
determinada letra, etc. Até mesmo na caixa de areia do parquinho, letras
começaram a surgir desenhadas com a ponta do dedo ou com auxilio de um graveto.
Noutro momento, em uma atividade de desenho livre, uma menina após terminar o
seu, escreveu algumas letras isoladas por toda a folha. A fim de identificar os
trabalhos das crianças, eu escrevia o nome de cada uma delas no canto da folha,
e algumas crianças já reconheciam o seu nome dentre os demais. Muitas vezes,
tentavam reescrever o seu nome, copiando-o sobre o que eu havia escrito.
Com a conclusão do projeto,
percebemos o quanto as crianças aprenderam naquelas semanas. Conhecimentos que
não se resumem apenas a letras, palavras e nomes. Mais importante que isto, é
que as crianças descobriram que as letras estão em todo o lugar e que farão
parte de suas vidas para sempre. Seja para ler uma história, escrever um
bilhete na agenda como faz a professora, anotar um recado, da mesma forma que
faz a secretária da pediatra, ler o jornal como o pai, etc.
Em outras palavras, pudemos perceber
que, o tema deste projeto de aprendizagem foi o letramento, uma vez que a minha
intenção como professora foi oportunizar às crianças, um contato com materiais
escritos e seus usos sociais.
De acordo com Magda Soares:
Da mesma forma, a
criança que ainda não se alfabetizou, mas que já folheia livros, finge lê-los,
brinca de escrever, ouve histórias que lhe são lidas, está rodeada de material
escrito e percebe seu uso e função, essa criança é ainda “analfabeta”, por que
não aprendeu a ler e escrever, mas já penetrou no mundo do letramento, já é de certa forma, letrada. (SOARES, 2001, p.24)
A função do letramento, ao contrário
da alfabetização não é ensinar as crianças a ler e escrever, e sim, criar condições
para isto. É colocar a disposição da criança, seja em casa ou na escola,
diversos materiais escritos para que ela possa conhecer, manusear, brincar.
Desta forma, a criança entrará na escola já familiarizada com o mundo das
letras e apresentará maior facilidade para se alfabetizar. Ferreiro afirma que
as crianças que tiveram acesso a experiências educativas nas quais são
oferecidos diversos tipos de estímulos para entrarem em contato com a língua
escrita avançam mais rapidamente e iniciam em ótimas condições na escola de 1°
grau.
Angela
Kleiman, por sua vez, defende que:
De fato, a
oralidade é objeto de análise de muitos estudos sobre letramento. Um outro
argumento que justifica o uso do termo
em vez do tradicional “alfabetização” está no fato de que, em certas classes
sociais, as crianças são letradas, no sentido de possuírem estratégias orais
letradas, antes mesmo de serem alfabetizadas. Uma criança que compreende quando
o adulto lhe diz: “Olha o que a fada madrinha trouxe hoje!”está fazendo uma relação
com um texto escrito, o conto de fadas: assim, ela está participando de um evento de letramento (porque já
participou de outros, como o de ouvir uma estórinha antes de dormir); também
está aprendendo uma prática discursiva
letrada, e, portanto essa criança pode ser considerada letrada, mesmo que ainda
não saiba ler e escrever. (KLEIMAN, 1995, p.18)
De acordo com Ferreiro: “A escrita é
um objeto social, mas a escola transformou-a em um objeto exclusivamente
escolar, ocultando ao mesmo tempo suas funções extra-escolares [...]” (FERREIRO,
2004, p.70) O letramento auxilia a criança a descobrir que há inúmeros tipos de
materiais para serem lidos e diversas situações em nossas vidas em que iremos
nos utilizar da leitura e da escrita. Desta forma ela não irá pensar que
aprendemos a ler na escola, os livros e materiais próprios da escola e que
somente lá faremos uso destas habilidades.
Ainda no livro Letramento: um tema
em três gêneros, Magda Soares diz que é preciso promover condições para o
letramento, pois entre os grupos sociais há diferentes níveis de letramento que
se estabelecem pelas condições sociais, culturais e econômicas. Certamente as
classes economicamente desfavorecidas terão menos acesso a materiais impressos,
uma vez que os preços dos livros, jornais e revistas são altos. A pessoa muitas
vezes não tem hábitos de frequentar bibliotecas, ou ainda estas também não
estão ao alcance das mesmas. Nas camadas mais pobres da população ainda é
grande o número de pessoas analfabetas, que nunca estiveram na escola, ou ainda
que frequentaram-na por pouco tempo e não mais fazendo uso das habilidades de
leitura e escrita, acabaram por tornarem-se alfabetizadas, porém não letradas.
Segundo
Ferreiro:
[...] os filhos de
pais alfabetizados (melhor dizendo: que usam no cotidiano e com freqüência
língua escrita) chegam à escola com uma série de conhecimentos que adquiriram em contextos sociais de uso
deste objeto social e, além disso, com uma série de conhecimentos, produto
de suas explorações ativas sobre a língua escrita (graças a livros, revistas e
jornais que possuem em casa; graças à possibilidade de escrever que oferecem os
lápis e papéis em branco que possuem em casa; graças às informações que recebem
em contextos variados, totalmente informais, por que puderam perguntar se havia alguém por perto em condições de responder).
As crianças de pais não-alfabetizados ou semi-alfabetizados tampouco chegam ignorantes a escola;
chegam, porém com muito menos informação: quase tudo que sabem é produto de suas próprias explorações ativas sobre
a língua escrita em contextos pouco apropriados (a escrita em uma camiseta, em
um pedaço de jornal que serve para acender o fogo, na embalagem de um produto
comestível que serve para guardar qualquer outra coisa ou serve como um vaso de
plantas...;[...] (FERREIRO, 2004, p.71)
É importante salientar que saber ler
e escrever e apropriar-se da escrita não são sinônimos. O primeiro caso
refere-se ao ato de adquirir uma tecnologia de decodificar a língua escrita. Já
o segundo caso trata-se de assumir uma postura frente a leitura e escrita. É
saber fazer uso destas habilidades e ter hábitos de usá-las
É fundamentalmente importante que a
escola promova condições para o letramento, disponibilizando momentos de
inserção das crianças com o mundo letrado, permitindo que elas fiquem imersas
em ambientes letrados, onde teriam acesso aos livros, revistas, jornais, bibliotecas,
etc. É dever das escolas e dos professores manter este contato das crianças com
o universo da leitura e da escrita, pois como vimos muitas vezes as crianças não
tem em casa as mesmas oportunidades. É o caso dos filhos e filhas de pais
analfabetos ou que, mesmo alfabetizados, não tem hábitos de leitura. Para
Kaercher,
Isto equivale dizer
que tornar o livro parte integrante do dia-a-dia das nossas crianças é o
primeiro passo para iniciarmos o processo de sua formação como leitores. Cabe
destacar, ainda, que estou me referindo a leitores
como sendo pessoas que leiam, com fluência e freqüência, mas também por
prazer, por alegria, por desejo próprio. É igualmente importante frisar que,
quando me refiro a leitura, estou concedendo-a como um processo amplo de
construção de sentidos, que não se reduz apenas ao domínio da palavra escrita,
mas que, fundamentalmente, abrange as diversas linguagens (gráfico-plástica,
musical, corporal, imagética, etc.) que fazem parte (ou deveriam fazer) do dia-a-dia
da Educação Infantil. (KAERCHER, 2001, p.85)
A seguir, passarei a fazer uma breve
avaliação do ambiente da sala de aula, bem como das brincadeiras e dos momentos
da rotina, discutindo sobre como todos estes fatores podem auxiliar no
letramento das crianças.
ANÁLISE DO ESPAÇO DA
SALA DE AULA E DAS BRINCADEIRAS DE FAZ DE CONTA
A decoração e a organização do espaço
da sala de aula tem muito á contribuir para a aprendizagem das crianças.
Entende-se por espaço, os móveis, objetos, materiais didáticos e a própria
decoração da sala.
Maria da Graça Souza Horn (2007),
define o espaço como:
O espaço, então, é
entendido numa perspectiva definida em diferentes dimensões: A física, a
funcional, a temporal e a relacional, legitimando-se como um elemento
curricular. Nesta dimensão, ele possibilita oportunidades para a aprendizagem,
por meio das interações possíveis entre crianças e objetos e delas entre si. A
partir dessa perspectiva, o espaço nunca é neutro, podendo ser estimulante ou
limitador de aprendizagens, dependendo das estruturas espaciais que estão
postas e das linguagens que estão representadas. (HORN, 2007, p.102 apud REDIN)
Da mesma forma, os jogos
pedagógicos, simbólicos, histórias, músicas para cantar e ouvir e a própria
hora do brinquedo livre também são ótimas oportunidades para a criança
vivenciar o letramento.
Segundo Horn (2007),
Nesse sentido, no
que diz respeito à educação infantil, andar, desenhar, pintar, modelar,
recortar e colar, chorar, bater, estar diante de uma situação de conflito e ter
de resolvê-lo ou não, rir, debochar, brincar, ouvir e contar histórias, cantar,
dançar são linguagens, são produções, realizações, funcionamentos das crianças
vivenciados e compartilhados pelos sujeitos e objetos em interação nas rotinas
de creches e pré-escolas. (HORN, 2007, p. 103 apud REDIN)
O ato de ler e contar histórias para
as crianças, desde pequenas estimula-as em diversos sentidos. Pode ser uma
ótima maneira lúdica de ampliar o vocabulário das mesmas, estimular a
oralidade, desenvolver o gosto pela leitura, a criatividade, imaginação, etc.
Também através das histórias podemos trabalhar questões como valores, assuntos
diversos relacionados a conteúdos de outros projetos, etc. Estas habilidades
podem ser desenvolvidas também através de músicas, tanto as infantis como
outras que fazem parte do cotidiano dos nossos alunos, dentro e fora da escola.
Através das músicas, as crianças conhecem um grande repertório de
palavras, diversos tipos de músicas, ritmos mais lentos ou mais agitados,
conhecem uma infinidade de instrumentos musicais, etc. A criança tem
oportunidades de manifestar sua expressão oral e musical, cantando musicas
durante uma atividade dirigida pela professora como também em brincadeiras
livres, onde uma peça de encaixe pode se transformar em microfone e aquela
criança passa a ser um cantor famoso. Outro momento na Educação Infantil em que
se faz uso da música é a própria rotina, seja para determinar a hora do lanche,
do soninho, para introduzir a hora do conto, da rodinha, ou ainda para avisar
as crianças que é chegada a hora de ir para casa.
Durante a realização do projeto,
propus às crianças diversos jogos pedagógicos envolvendo as letras. Entre eles,
jogos de memória e bingos com as letras e um desenho referente às mesmas, (por
exemplo, a letra A e o desenho de uma árvore.) Também brincamos com uma espécie
de jogo do lince, onde havia uma grande cartela com todas as letras que nós
havíamos estudado e as crianças deveriam escolher uma delas, que estavam
espalhadas no centro da mesa e procurá-las na cartela grande. Estes jogos foram
confeccionados por mim.
A
hora do brinquedo livre por sua vez, é mais um momento na rotina das crianças
onde o letramento está inserido e que muitas vezes passa por despercebido aos
olhos da maioria dos professores. Sobretudo nas brincadeiras de faz de conta
que são de grande valia para as crianças entenderem a importância da leitura e
da escrita na vida das pessoas. Certo dia, observei algumas crianças brincando
de trazer seus “filhos” na “creche”. Uma das meninas chegou para a “professora”
dizendo “Se ela não se comportar, pode escrever na agenda”. É notório que
aquelas crianças perceberam a utilidade da agenda, no caso uma comunicação
entre a professora e os pais.
Em outro momento, enquanto eu estava
realizando a troca (um momento na rotina da turma em que arrumamos as crianças
para irem para casa) uma menina pegou sua agenda, abriu em determinada página,
e passando o dedo pelas letras que escreviam o recado aos pais, disse: “A Ana
Paula passou bem o dia!” Este era um recado que algumas vezes eu escrevia na
agenda para informar aos pais sobre o dia de seu filho. Percebe-se que estes
pais costumavam ler a agenda na presença da filha, levando-a a conhecer pelo
menos um dos usos sociais da leitura e da escrita. Estas duas situações
comprovam que mesmo nos momentos em que aparentemente as crianças estão apenas
brincando, elas estão exercitando o letramento. Roxane Rojo ressalta a importância
dos jogos de faz-de-conta na passagem a seguir:
É no ‘fazer-de-conta
que lê’ e no ‘fazer-de-conta que escreve’ - eles próprios práticas
interacionais orais - que o objeto e as práticas escritas são norteados e ganham
(ou não) sentido(s) para a criança. Estes jogos se dão em diferentes
instituições sociais (família, pré-escola, escola, etc.), que consignam ao
sujeito diferentes papéis e possibilidades: o daquele que pode ler e escrever
ou fazer de conta que lê e escreve e o daquele que não o pode porque não o sabe
. É na presença/ausência do brincar de ler para a criança (jogos de contar), no
brincar de ler com a criança, no brincar de desenhar e escrever (jogos de
faz-de-conta) que se reencontra o sentido social da escrita daquela subcultura
letrada. (Rojo, 1995, p. 70 apud Kleiman )
Os relatos a seguir foram observados
enquanto as crianças brincavam no cantinho das fantasias. Contudo, antes de
prosseguir, gostaria de fazer um parênteses para falar dos cantos temáticos. São espaços dentro da sala de aula,
organizados com diferentes materiais e brinquedos, possibilitando as crianças
interagirem com as diferentes linguagens. Horn define os cantos temáticos como:
[...] uma
alternativa que possibilitará a interação das crianças com diferentes
linguagens na medida que permitirá sua interação com diferentes materiais,
permitindo-lhes um entendimento de uso coletivo de espaço, onde ao mesmo tempo
são possíveis escolhas individuais e grupais que certamente favorecem também a
construção de sua autonomia. Os procedimentos e técnicas de ensino se tornam
mais flexíveis, abertos e dinâmicos, estimulando a exploração ativa do ambiente
escolar, promovendo a possibilidade de a criança manipular, jogar e
experimentar sem a constante intervenção direta do educador. (HORN, 2007, p.
104 apud REDIN)
Em nossa sala de aula, montamos
cantos temáticos, dos quais, um deles era o cantinho das fantasias, onde havia
um tonel repleto de roupas e sapatos, ao lado, uma penteadeira com acessórios
de cabelo, óculos de sol e também um cabideiro com bolsas. Fixado à parede, um
grande espelho. Neste cantinho, os meninos e meninas de 3 e 4 anos de idade, transformavam-se
em homens e mulheres, pais, mães, pediatras, secretárias, estudantes,
vendedores, industriários, etc.
Outro canto temático em nossa sala
de aula era uma mesa redonda, sobre a qual havia teclados de computador,
telefones velhos, calculadoras, etc. Logo ao lado, ficava a nossa biblioteca,
que continha além de livros e revistas, também jornais e diversos materiais
para escrever, desenhar, pintar e recortar. Desde agendas e cadernos usados,
folhas reutilizadas, retalhos de papel de diversas cores, entre outros.
Em um determinado momento do
projeto, observei uma brincadeira de faz de conta das crianças. Na ocasião, além dos cantos temáticos, também
disponibilizei algumas bonecas. Sentei no tapete para interagir com algumas
crianças ao mesmo tempo em que observava as brincadeiras que passavam a surgir.
A atividade preferida da turma naquele dia foi levar os “bebês” à pediatra.
As meninas usavam roupas, sapatos,
óculos, enfeites no cabelo, colocavam bolsas, enrolavam seus “bebês” em panos e
levavam-nos para consulta com a “pediatra”. A “Dra” esperava os “pacientes”,
sentada de um lado de uma mesa, sobre a qual havia um bloquinho de papel, o
“receituário”. Do outro lado da mesa, sentava a “mãe” com o “bebê”. A “Dra.”
rapidamente examinava o “o paciente” e imediatamente começava a escrever a
“receita”. Muitas vezes até dizia o nome de algum remédio que provavelmente
tinham em casa. Outras vezes, tocava o telefone e a “pediatra” atendia,
anotando um recado no mesmo bloquinho que outrora fazia às vezes de
receituário. Estes são mais alguns exemplos de usos da linguagem escrita que as
crianças descobrem e exercitam durante as brincadeiras.
Um fato que me chamou a atenção foi
que não apenas as meninas no lugar de mães participaram da brincadeira, mas
também os meninos, representando seus pais. Nesta turma, havia um significativo
número de pais de alunos que participavam dos cuidados do filho, levando-os ao
pediatra para consultar, fazer vacinas, traziam e buscavam na escola todos os
dias, etc. Provavelmente este seja o motivo dos meninos demonstrarem interesse
por brincadeiras que até então eram vistas como sendo exclusividade das
meninas. Em outras palavras, estavam representando por meio da brincadeira,
situações vivenciadas no seu cotidiano.
Todas estas situações comprovam que
as crianças, ao mesmo tempo em que estão brincando, também estão desenvolvendo
diversas aprendizagens. Uma delas é o letramento, inserido não só nas
brincadeiras, como também nos momentos da rotina, nas atividades dirigidas e na
própria decoração da sala de aula.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
De posse dos relatos das atividades
desenvolvidas por esta turma de educação infantil e somando-os as reflexões
feitas neste artigo, concluímos que é possível trabalhar o letramento com as
crianças desta faixa etária. No desenrolar do trabalho, verificamos como são
ricas as oportunidades de aproximarmos as crianças ao mundo letrado sem deixar
de lado a ludicidade. Não só é possível como também fundamental que se
desenvolva este tipo de atividades com as crianças da Educação Infantil.
Como vimos no texto, nem todas as
crianças possuem oportunidades iguais devidos a fatores sócio econômicos e ou
culturais. O professor precisa conhecer a realidade de seus alunos para
procurar a melhor forma de agir em cada caso. Uma vez conhecendo um pouco mais
sobre as vivências de cada um, é imprescindível que a escola desempenhe a
função de oferecer a todas as crianças, um contato com diversas formas de
leitura e escrita, bem como seus usos sociais. É dever da escola propor
situações em que o aluno conviva com o mundo letrado, seja no ambiente da sala
de aula, nos momentos de brincadeira, durante a rotina ou mesmo no
desenvolvimento de projetos de estudos com assuntos variados. Para fundamentar
este parágrafo, cito Ferreiro:
O que sabemos é que
os professores que se atrevem a dar a palavra às crianças e a escutá-las
descobrem rapidamente que seu próprio trabalho se torna mais interessante (e
inclusive mais divertido), embora seja mais difícil porque os obriga
continuamente a pensar. (Ferreiro, 2004, p. 51)
Outro fato que considero fundamental
salientar é que devemos informar aos pais sobre a importância de proporcionarem
aos filhos, momentos de interação com livros e diversos materiais escritos,
ainda que muitos sequer sejam alfabetizados. É preciso conscientizá-los de que devem incentivar
seus filhos a terem o desejo de aprender sempre mais. É importante envolver a
família sempre que possível, nas atividades da escola, seja lendo ou contando
oralmente uma história, participando das atividades ou em outras ocasiões.
Para que os objetivos acima sejam
alcançados, é importante investir na formação inicial e continuada dos
professores que atuem nesta área, para que possam aprimorar cada vez mais a sua
prática a fim de promoverem o bem estar de seus alunos.
Só assim, tornando nossos alunos
letrados, é que poderemos pensar em uma sociedade mais justa, mais cidadã. Uma
sociedade onde todos os sujeitos possam ser considerados alfabetizados, capazes
de compreenderem novos conhecimentos e oportunidades, enfim, de lutar pelos
seus direitos, em busca de uma vida mais digna.
“Há
que se alfabetizar para ler o que os outros produzem ou produziram, mas também
para que a capacidade de “dizer por escrito” esteja mais democraticamente
distribuída. Alguém que pode colocar no papel suas próprias palavras é alguém
que não tem medo de falar em voz alta.” (Ferreiro, 2004, p.54)
Com
estas sábias palavras de Emilia Ferreiro, encerro as reflexões a cerca do
letramento trazidas neste artigo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
CRAIDY,
Carmen Maria. KAERCHER, Gládis Elise P. da Silva (organizadoras) Educação
Infantil: pra que te quero? Porto Alegre: Artmed, 2001.164 p.
FERREIRO,
Emília. Com Todas As Letras. São Paulo: Cortez, 2004. 102 p.
KLEIMAN,
Angela B. (org.) Os Significados do Letramento: uma nova perspectiva sobre a
prática social da escrita. São Paulo: Mercado de Letras, 1995. 294p.
REDIN,
Euclides de (org.) Infâncias: cidades e escolas amigas das crianças. Porto
Alegre: Mediação, 2007. 152p.
SOARES,
Magda. Letramento: Um Tema em Três Gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
128p
Este artigo foi escrito em 2010 para a disciplina "Linguagem no processo educativo" do curso de Pedagogia. Posteriormente no ano de 2012, uma nova pesquisa foi realizada com os alunos envolvidos neste projeto de aprendizagem que dá nome ao artigo, a fim de descobrir se as práticas de letramento às quais as crianças tiveram acesso na Educação Infantil, anos antes, facilitaram ou não o seu processo de alfabetização no 1° ano do Ensino Fundamental. Para quem tiver interesse, a monografia está na biblioteca virtual da Universidade Feevale.
ResponderExcluirwww.feevale.br/biblioteca/biblioteca-virtual